sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Digamos que... você resolveu estudar filosofia após os quarenta


Digamos que você se deu bem na vida. Fez uma brilhante carreira profissional, tem bons amigos, formou família. Tem aquele cargo e aquele carro que os outros invejam, o salário e o reconhecimento que deixam mãe e pai orgulhosos. Tem filhos que o amam e uma esposa adorável, casa na praia, cartão platinum, poupança. A saúde, bem obrigado: corre e joga tênis, bebe com moderação, não fuma e come equilibrado – é o cara que o médico da firma põe como exemplo.

Digamos que você é o que se diz um cara de sucesso, e ainda bom sujeito. Pede por favor à secretária, é gentil com os funcionários, os colegas o respeitam, os vizinhos falam bem. Deu uma mão ao amigo quando foi preciso, a família sabe que pode contar, não vai à igreja mas também não teria grandes pecados para confessar. Na política, odeia os extremos e se indigna lendo o jornal.

Tem tudo para ser feliz -e é! Não dá para dizer que não é, seria muita ingratidão com a vida, que tanto lhe deu. Ou, melhor, ninguém lhe deu: você fez para merecer, trabalhou duro, não saiu da linha, soube superar os momentos difíceis e aferrar as oportunidades. Hoje vê o fruto de tanto esforço; senta para olhar o horizonte e, enquanto o sol se põe e o pessoal vai deixando a praia, você faz um balanço, satisfeito, coçando a barriguinha -que anda resistindo até mesmo a série extra de abdominais.

Mas há algo que incomoda. Um ruido de fundo, uma vozinha lá atrás que atrapalha. Algo que está ameaçando estragar a cena de comercial de cartão de crédito -ou de banco, ou de carro, ou de refrigerante... E você percebe que estava um passo antes de começar a se perguntar se isso tudo basta, sem entender como poderia não bastar. Mas você já se perguntou, e agora não dá para voltar atrás. Como no poema de Yeats, você se perguntou: Now, what?

Digamos que isso aconteceu com você. Que pode não ter admitido para ninguém, nem para você mesmo, mas ao ler estas linhas há algo que soa familiar e você não consegue evitar pensar se estou escrevendo para você. E digamos que estou, efetivamente, escrevendo esta coluna para você.

Se isso está acontecendo, se você é esse bom sujeito bem sucedido de quem e para quem estou aqui falando, profissional ou executivo que sente que algo mas é possível ou preciso, então, meu amigo, é bom fazer como você sempre fez: encarar as coisas e decidir por você mesmo. Afinal, se trata de sua vida, e nesta altura você já sabe que o tempo corre e não volta. Vários caminhos são possíveis. Um deles é a filosofia -deixemos que sobre outros lhe contem os escritores de auto-ajuda, os psicanalistas, os monges ou o médico que prescreve Prozac.

Digamos, então, agora, que você resolver estudar filosofia. Pode começar com um livro, com um curso breve ou até mesmo assistindo algumas aulas como ouvinte, qualquer caminho serve. O que importa é se deixar levar, jogar segundo as regras -ou seja, ler e escutar com calma, procurando se colocar na pele do filósofo, qualquer que seja, vestir seu modo de pensar para depois, somente depois, sair dele e ver o que aconteceu.

Aprende-se a filosofar, não filosofia, disse alguém (mas há sempre quem se oponha e diga o contrário: faz parte, é assim mesmo). Interessa menos saber quem disse o que e mais, muito mais, se expor a novos e diferentes modos de manejar uma idéia, de pôr as rodas do pensamento a funcionar a partir de algo que emerge do quotidiano e se mostra com novos contornos. Por exemplo, essa frase que acabei de citar: “Aprende-se a filosofar, não filosofia”. O que isso significa, qual é a diferença, e por que isso poderia ser relevante?

O que esta frase quer dizer é que a filosofia não é um conhecimento que se acumula, no sentido de saberes que vão se somando e que se retiram de um estoque para ocasiões necessárias. Não se trata de decorar filosofemas (isto é, frases de conteúdo filosófico) como “Penso, logo existo”, “Sou a história que conto a mim mesmo” ou "O coração tem razões que a razão não compreende". Ou seja, aprender filosofia não é propriamente aprender como é aprender estudar história, ou literatura inglesa. Estudar filosofia parece bastante com exercitar-se num novo esporte: aprendem-se movimentos novos, treina-se por repetição, no começo custa e dói. Após um certo tempo, você descobre que adquiriu uma habilidade nova, que músculos que nem sequer sabia que existiam estão aí, funcionando e dando novas satisfações.

Lê-se muito e se escreve muito quando se estuda filosofia. Ler passa a ser algo diferente do que sempre fora: há técnicas de abordagem do texto, o manejo dos conceitos se faz mais eficaz. A mesma coisa acontece com o exercício de escrever: as palavras ficam mais visíveis, e escrever é uma forma de pensar; o filósofo é o que em alemão se diz um Federdenker, isto é, alguém que pensa escrevendo. Quem escreve bem tem mais facilidade para estudar filosofia, isso é fato, mas quem estuda filosofia necessariamente passa a escrever melhor -e escrever melhor é pensar melhor.

A experiência de vida ajuda, e muito. Quem viveu e viveu bem pode não ter a flexibilidade de um adolescente, mas tem músculos que fortalecer, não apenas fazer mais maleáveis. Existem excelentes e péssimos alunos de todas as idades, e você, que resolveu voltar a estudar após uma carreira bem sucedida, tem vantagens que outros não têm.

Os músculos que se exercitam ao encarar a filosofia são os do pensar. Alguém que estuda filosofia exercita o raciocínio lógico (a ferramenta da razão) e melhora a capacidade para tomar decisões. Aprimora a oratória, incrementa as habilidades de comunicação, de persuasão. Uma formação filosófica dá elementos para analisar melhor uma situação de mercado, a dinâmica de uma equipe, uma campanha publicitária...

Nesse sentido estudar filosofia pode ser de grande ajuda na carreira ou na profissão, qualquer que seja a carreira, qualquer que seja a profissão. O alemão Immanuel Kant dizia que a filosofia pode ser serva de outros saberes -apenas punha em dúvida se era a serva que ia à frente portando a luz para iluminar o caminho de sua senhora, ou atrás dela, levando o manto para não sujar.

Assim, a filosofia pode ser um reforço na hora em que você encara a reta final de sua carreira -talvez a mais rica. O problema (é aqui o dever de honestidade exige advertirmos sobre os riscos) é que a filosofia muda mais do que apenas as ferramentas do pensar aplicado.

O que muda, substancialmente, quando você encara o estudo sério da filosofia é o que os alemães (de novo eles!) chamam de Weltanschauung; algo assim como visão de mundo ou cosmovisão. Isto é, o lugar onde você está parado, o que o rodeia, o que é importante e o que não é importante. E nisso, os seus valores antigos podem ser questionados, ficar expostos nas suas fraquezas ou contradições. A foto do comercial de cartão de crédito pode se mostrar isso, apenas uma foto bonita feita por alguém outro para você se encaixar nela. E aí casa de praia, vinho italiano, charutos, carro novo podem vir a perder atratividade e importância na sua vida.

Se isso acontecer, pode ser que você comece de novo. Que você ganhe uma nova juventude, com o que isso pode ter de bom e de ruim: novos desafios e novas metas, mas também novos riscos e as dores que toda mudança importante acarreta. Tenha por certo que muita gente não irá entender, mas saiba também que, se for o caso, você não irá se importar tanto.

Digamos que, feitas as advertências, você resolve arriscar e tentar. Então vale uma lembrança do estóico Séneca: “entre postergação e postergação, a vida passa”.

Ou seja: faça logo.


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