sexta-feira, 21 de março de 2008

Consumadictos, consumodependentes e as redes sociais –ou como viramos todos mercadoria (I)

As redes sociais são conseqüência direta da Internet. Não poderiam existir Orkut e Facebook (que, juntas, passam dos 100 milhões de usuários), sem a rede que une os computadores pessoais de seus membros. Também não poderiam existir sem esses computadores, claro, e sem a possibilidade de que tudo que é sólido desmanche no ar na forma de bits e bytes, isto é, sem que música, texto, fotos e vídeos possam ser transformados, de maneira simples e intuitiva, em material que pode facilmente ser editado, reunido e exposto com ferramentas gratuitas, disponíveis e igualmente simples e intuitivas. Jornal escolar sempre existiu mas, convenhamos, quando comparadas aquelas folhas sujas que, no melhor dos casos, conseguíamos pôr para circular em número limitado de exemplares e com poucas possibilidades de alguma sobrevida para além da primeira edição, com a tela brilhante de um computador, cheia da vida dos vídeos, das fotos que se atualizam a cada dia ou mais, as músicas, e ainda tudo disponível para centenas, milhares, milhões mesmo de pessoas... não dá para comparar, realmente.

Isso tudo que acabei de dizer são obviedades, hoje. A tecnologia coloca a disposição das pessoas algumas possibilidades, e as pessoas as estão utilizando. Sabemos, porém, que não basta que uma ferramenta esteja ferramenta para levar milhões de pessoas a utilizá-la -antes, as redes sociais mostram algo que estava latente na sociedade e que a combinação de ferramentas fez foi facilitar, tornar possível. A breve, mas movimentada e rica, história da internet está cheia de grandes e pequenas idéias que deram errado (veja uma lista interessante na CNET) , e de algumas grandes e pequenas que deram certo; as redes sociais fazem parte das que deram certo, e isso tem a ver com algo que estava aí e que, salvo iluminação genial, não podia se descobrir sem colocar as ferramentas ao alcance das pessoas. Quem inventou Orkut (e tantas outras: veja uma lista não exaustiva clicando aqui) tocou um nervo sensível, fez reagir um organismo que estava pronto para isso. Em alguns países, a vida social dos jovens está mediada eletronicamente; melhor dizendo: em alguns países está mais mediada eletronicamente, pois a tendência é que não existam exceções, nem sequer por causa de renda. Os celulares capazes de enviar e receber SMS são tão ubíquos quanto os computadores com acesso à rede mundial: desde o lar ou desde uma lan house ou um cyber-café, crianças de todas as cores participam desse fenômeno que está mudando a cara do mundo. É uma cybervida, própria de uma sociedade confessional, uma sociedade onde os limites entre o público e o privado se apagam ou diluem.

As (supostas) respostas ao por que desta febre são conhecidas: as pessoas querem se comunicar, os jovens gostam da possibilidade de fazer ou manter amigos pelo mundo todo, trocar fotos, músicas, experiências... Mas estas não são respostas: são descrições do fenômeno constatado. De fato, a maioria dos experts no assunto limitam-se a trabalhar com uma combinação de descrição de cases, somados a previsões feitas em tom catastrófico ou entusiasmado (isso depende de um ponto de partida que remete àquilo que Eco, genialmente, chamou de “apocalípticos ou integrados”). Para compreender o que há por trás destas movimentações é preciso sair do puro mundo da internet, fuçar além das páginas de merges & aquisitions e do mundo veloz do blogs: sociologia, filosofia, psicologia social podem ajudar bem mais.

Polonês nascido em 1929, Zygmunt Bauman é professor emérito nas universidades de Leeds e de Varsóvia (publica no Brasil pela Zahar). Sua sociologia é daquelas que conversa fluentemente com as filosofias contemporâneas, um pouco á maneira de Baudrillard e até de um certo Habermas. Bauman é autor de uma metáfora que, ancorada numa frase marxista (“tudo que é sólido desmancha no ar”), serve como ilustração de um estágio do mundo que outros chamam de pós-modernidade: modernidade líquida, diz ele, e a figura funciona. Os sólidos da era moderna se desfizeram e foram substituídos por um fluido que nos envolve e nos afoga.

Em Vida de Consumo (Consumption Life, traduzida ao espanhol, seguramente logo mais ao português), Bauman parte da análise das redes sociais para compreender a transformação da sociedade de produtores (moderna) em sociedade de consumidores. As redes sociais na internet são um modo de materializar o traço distintivo desta sociedade: as pessoas viram (viramos) um produto que deve ser consumido, e que para tal deve ser promovido, colocado no mercado, valorizado... As redes sociais, os blogues são vitrines capazes de expor (ex-pôr, por para fora; ex-istir) o produto que se quer fazer desejável.

Tomemos o exemplo mais próximo para testar esta visão: vejamos o caso deste blogue. Uma foto que valoriza o autor, textos que se querem inteligentes, uma descrição do produto, marcas prestigiosas em volta, um layout curado... o que está sendo feito aqui, senão a venda do produto Andrés Bruzzone? Isto é particularmente verdadeiro, e pode ser até desculpado, quando se trata de um profissional independente, um consultor especializado, que precisa renovar seus contratos e seu portfólio, e que o que vende é, justamente, a sua capacidade de compreender questões como a que trata este texto. Mas o autor deste tem outros blogues (http://40grados-sur.blogspot.com/ , por exemplo), sem qualquer propósito profissional e que se valorizam segundo o número de posts, de visitas, de coments... ou seja, o valor está dado pelo sucesso junto ao público. Olhemos qualquer comunidade no Orkut: os indicadores de performance estão na resposta de mercado (visitas e adesões), e há campanhas de recrutamento ou marketing: crianças e adolescentes enviam mails aos seus amigos, pedindo que façam comments nos seus fotologs, colocam nos seu nick do MSN o link para a página que querem promocionar...

Voltemos a Bauman, e o que está por baixo do visível.

Se trata de manter vivo um sistema, o capitalismo, cuja razão de ser é a “transformação do capital e do trabalho em mercadoria, em bens de troca” (Habermas). No seu estágio mais avançado, o capitalismo exige uma renovação crescente e acelerada: lemos na autobiografia de Jack Welch que ele presidiu por 20 anos a GE com trimestres de resultado sempre crescente. Sustentar isso para além de uma companhia isolada requer que o consumo seja crescente, e para isso não basta o aumento vegetativo da população. Antes, postula Bauman, cria-se um sistema de renovação constante do desejo de compra, e para tal uma série de mecanismos perversos é posto em jogo. Trata-se de prometer satisfação a um desejo irrefreável, garantindo, porém, que a satisfação seja fugaz e, na sua ausência, deixe espaço a uma necessidade renovada. Qualquer semelhança com alguma forma de adição dista muito de ser mera coincidência –ainda que este caminho não seja explorado pelo autor.

Esta lógica ou (falando corretamente) este padrão de comportamento impregna a sociedade como um todo, refundando as relações humanas à imagem e semelhança das relações que se estabelecem entre consumidores e objetos de consumo. Assim, afirma Bauman, “na sociedade de consumidores ninguém pode virar sujeito sem antes se converter em produto”. O que pode dar uma chave para entender o fenômeno das revistas de celebridades, os BBBs, a criançada querendo ser “famoso” quando adulto –já não mais bombeiro, astronauta, super-herói... Ser famoso é a vacina contra o esquecimento, a indiferenciação: ser famoso é ser (um produto) admirado, desejado, invejado, cobiçado. “A invisibilidade é sinônimo de morte”, diz o autor citando Germaine Greer.

A subjetividade passa a ser matéria de consumo: constrói-se um sujeito na conjunção de decisões de consumo. A indústria da beleza, na forma cosmética ou cirúrgica, não é nada senão uma forma de manter o produto (eu) valorizado e sempre atualizado. Qual a roupa que visto, qual o clube que freqüento, qual o carro que dirijo, quais os livros que leio, qual o bairro em que moro... o que me define como pessoa (perante os outros e perante mim) é esta soma algébrica de consumos –e a educação, a escolha de um parceiro no casamento, as amizades, o emprego não seguem padrões diferentes. Do que segue que as relações humanas ficam subsumidas por este padrão, fazendo do outro produto perante mim, e de mim perante o outro; é a conseqüência necessária do que dizíamos.

(...deve continuar)

Um comentário:

andres bruzzone disse...

Um artigo relacionado, em EL PAIS: http://www.elpais.com/articulo/sociedad/Atrapados/tecnologia/consumo/elpepisoc/20080324elpepisoc_1/Tes